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domingo, 13 de fevereiro de 2011

EIS O HOMEM


Muita gente me pergunta sobre a epígrafe do blog, um verso de Marco Aurélio Campos no poema Eis o Homem. Em homenagem aos leitores do blog e, especialmente, a meu avô, Seu "Nenê Domingues" (falecido em 1988), quem me ensinou o poema e, sobretudo, o apego às coisas da Pampa, publico Eis o Homem na íntegra:

Brotei do ventre da Pampa,
que é Pátria na minha Terra.
Sou resumo de uma guerra
que ainda tem importância.

Diante de tal circunstância,
segui os clarins farroupilhas
e, devorando coxilhas,
me transformei em distância.
Sou tipo que, numa estrada,
só existe quando está só.
Sou muito de barro e pó.
Sou tapera, fui morada.

Sou velha cruz falquejada
num cerne de coronilha.
Sou raiz, sol farroupilha,
renascendo estas manhãs.
Sou o grito dos tahãs
voejando sobre a coxilha.

Caminho como quem anda
na direção de si mesmo.
E, de tanto andar a esmo,
fui de uma a outra banda;
Se a inspiração me comanda,
da trilha logo me afasto
e até sementes de pasto
replanto pelas vermelhas
estradas velhas, parelhas,
ao repisar no meu rastro.

Sou a alma longa e tão cheia
como os caminhos que voltam
quando as saudade rebrotam
substituíndo os espinhos
que, à perda de alguns carinhos
antigos, velhos aprontes,
nasceram muitos, aos montes,
desta minha vida aragana,
nesta andança veterana
de ir destampando horizontes.

Eu sou a briga de touros
no gineceu do rodeio.
Impropério em tombo feio
quando um índio cai de estouro.
Sou o ruído que o couro
faz ao roçar no capim.
Sou tim-rim-tim-tim
da espora em aço templado.
Trago o silêncio, guardado,
do pago dentro de mim.

Fazendo vez de oratório,
sou cacimba destampada,
de boca aberta, calada,
como à espera do ofertório;
como vigília em velório,
nesse jeito que é tão seu:
tem muito de terra... É céu
que a gente sente ajoelhando
e, de mãos postas, levantando
o pago inteiro para Deus.

Sou o sono do cusco amigo
meio dentro do borralho.
Sou as vozes do trabalho,
no amor, na paz - sou perigo.
Sou lápide de jazigo
perdida nalgum potreiro.
Sou manha de caborteiro,
sou voz rouca de acordeona
cantando, triste e chorona,
um canto chão brasileiro.

Sou a graxa da picanha
na bexiga enfumaçada.
Sou sebo de rinhonada
me garantindo a façanha.
Sou vozerios de campanha
que nos lançantes se somem.
Sou boi-ta-tá, lobisomem.
Sou a santa ignorância.
Sou o índio sem infância
que, sem querer, ficou homem.

Sou o Sepé Tiarajú,
o Uruguai, rio-mar azul.
Sou o cruzeiro do sul,
luz e guia do índio cru.
Sou galpão, charla, e chirú
de magalhanicas viagens.
Andejei por mil paisagens,
sem jamais sofrer sogaço.
Cresci juntando pedaços
de brasileiras coragens.

Sou, enfim, o sabiá que canta,
alegre embora sozinho.
Sou gemido de moinho
num tom tristonho que encanta.
Sou o pó que se levanta,
Sou terra, sangue, sou verso.
sou maior que a história grega.
Eu sou Gaúcho, e me chega
pra ser feliz no universo.


Marco Aurélio Campos

A imagem é do LP TELURISMO, onde foi gravado o poema na década de 1980.

4 comentários:

  1. Na hora que percebi o seu "Eis o Homem", confesso que a primeira coisa que pensei foi sobre o Ecce Homo, de Nietzche. Contudo surpreendi-me ainda mais com a qualidade, sendibilidade e, como diria nossa grande Regina Zilbermann, com a cor local de seus escritos. Parabéns!!!
    http://cronutopia.blogspot.com/

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  2. Marcelo,
    "Caminho com quem anda na direção de si mesmo", um bravo canto gaúcho, intimista, relutante, que encontro aqui. Nosso eterno contraste,na alma gaúcha, não é mesmo? Belíssima escolha e sensibilidade de teu vô, ter te ensinado passos como esse. Teve sorte de conviver com um vovô assim!
    Gosto muito de visitar teu blog, e percebi comentário de meu amigo Dilso aí acima, ele é graduado em letras, portanto entendedor, e tem um ótimo blog também, deve ter recebido minhas "recomendações" do teu!
    Grande abraço e volto sempre!

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  3. Lucas Silva da Roisa14 de maio de 2012 às 10:17

    Gostaria de ter o audio desta poesia na voz do Marcelo meu msn é lucas_silva_rosa@hotmail.com. se existir alguma possibilidadepor favor entre em contato

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  4. Tentei duas vezes, sem êxito, postar um comentário, agora penso que vai... Interessante deparar-me com esta versão de "Eis o Homem" que penso ser a original, como a conheci e memorizei, algumas oportunidades recitei-a, mais para o meu deleite que para os outros, certamente, pois declamar impõe qualificação, é dom, não se aprende, aprimora-se. Digo versão original pois existem outras com versos modificados, na essência nada muda, são expressões buscadas ou alteradas para algum propósito talvez. Em 1981, trabalhando em Minas Gerais, decorei o poema que ainda lembro na íntegra. Longe do pago, na época, consolei a saudade com esse precioso poema e alguns mais de Aureliano e Jaime. Para registro relembro o saudoso mestre de Filosofia do Direito que afirmava que há, para os fatos e a história, muitas determinações, o que equivalente a modificações não autorizadas por quem gerou, gestou e pariu o fenômeno. Não há demérito na fuga ao retrato original, algum retoque, pode até modificar a beleza, está aí o "fotoshop" que extingue as estrias e a celulite promovendo um impacto melhor ao visual. Parabéns ao blogueiro pela fidelidade pela versão que mais gosto desse poema.

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